O debate prossegue, e pra nossa sorte, e postura da prefeitura de Fortaleza, pende para a não implantação do estaleiro em nossa orla.
Estaleiro ou vida urbana compartilhada?
Fausto Nilo. Arquiteto e urbanista
No âmbito dessa competitividade, as tendências apontam de maneira regular e crescente para os negócios do turismo e sua cadeia relacionada. Por tudo isso, os recursos considerados como sendo aqueles de maior valor estratégico no jogo das competitividades, no caso de cidades costeiras, são suas orlas. São lugares indispensáveis para atrair visitantes em convívio com residentes e, por essa razão, seus usos amigáveis e lucrativos incluem prioritariamente habitações, hotelaria, parques, congressos e convenções etc. Nos dias atuais, uso industrial nas orlas urbanas seria a última hipótese a ser examinada.
Há convergências mundiais sobre a necessidade de libertar as orlas da função de ``quintal`` urbano. Isso porque elas favorecem com vantagens os negócios do novo século, principalmente se comparados os volumes de benefícios originados desses negócios com aqueles decorrentes da sucata mecânica do século que passou. O debate sobre a implantação de um estaleiro na praia do Titanzinho mostra que é chegado o momento em que Fortaleza precisa aderir ao padrão universal das boas práticas aplicando as técnicas urbanísticas de controle da alteração de valores com escala estratégica e visão sustentável. Segundo essa visão, um projeto de intervenção no ambiente urbano só deve ser realizado se houver cruzamento balanceado e demonstrável, na obtenção de benefícios econômicos, ambientais e sócio-culturais, a uma só vez.
Os estaleiros, juntamente com os portos e suas atividades relacionadas são componentes importantes dos negócios industriais em situação obrigatoriamente costeira. Entretanto, quando situados em zonas de orlas urbanas, não produzem os efeitos cruzados do padrão sustentável. Isso acontece porque predominam entre seus resultados aqueles de caráter econômico. Na literatura urbanística sobre requisitos e efeitos de usos industriais, estaleiros estão classificados como Usos Localmente Indesejáveis. Portanto, se um projeto de estaleiro não pretende comprometer o futuro estratégico do ambiente de uma cidade costeira, a orientação relativa à sua localização será preferencialmente regional e em orla rural.
É por demais sabido que alguns usos do solo, ao se agregarem a vizinhanças podem resultar em desigualdade, injustiça, desperdício e até mesmo prejuízos urbanos colossais. Mesmo com a ajuda de recursos tecnológicos atuais, as atividades de um estaleiro resultam em situações perigosas causadas por poluentes, incluindo-se entre estas os restos de cádmio, cromo e chumbo. Por sua própria natureza física, a imagem urbana de um estaleiro com fronteiras fixadas por muralhas não se harmoniza com os espaços públicos de vizinhanças. A poluição sonora é insuportável. O intenso tráfego de cargas produzido pelas atividades relacionadas a ele será inevitável. Ninguém suporta a insalubridade de viver em proximidade de um estaleiro e isso pode ser constatado em todas as situações existentes no mundo.
A população fortalezense residente na área de influência da localização pretendida precisa ser informada com clareza sobre a potencial e inevitável alteração negativa de valores que ocorrerá em seus bens materiais e imateriais ao se tornarem vizinhos de um estaleiro naval. Uma vez confirmada a zona do Titanzinho como sítio de implantação do equipamento, gradualmente ela se especializará em um gigantesco distrito industrial pesado de uso único, o grande vilão ambiental das urbanizações metropolitanas. O lamentável paradoxo é que tudo isso ocorre num momento em que a área, com excelência paisagística e alto valor de memória, estaria a demandar exatamente o contrário: livrar-se da penosa destinação de uso do solo industrial. Mais lamentável ainda é que essa proposta do estaleiro venha a ocorrer após tantos recursos investidos no Complexo Industrial Portuário do Pecém, construído exatamente para esse fim.
Sobre o bom uso das orlas urbanas, o mundo atual apresenta uma infinidade de bons exemplos. Tomemos apenas o caso de Bilbao, cidade que chegou a ser a mais rica de seu país, por conta de seu porto, da indústria de aço, da mineração e da construção de navios. Hoje, depois de competentes cálculos de alteração positiva de valores sustentáveis, Bilbao é reconhecida por sua audaciosa decisão em promover a renovação urbana dessas áreas. Ela trocou os velhos estaleiros por parques, museu, universidade e transporte avançado, incrementando de maneira notável a atratividade turística da cidade.
A partir da remoção já confirmada dos depósitos de combustíveis da zona do Porto do Mucuripe, valeria a pena, isso sim, examinar uma alternativa sustentável de uso do solo para o contexto do Titanzinho: uma vizinhança urbana apoiada na intensidade de intercâmbio, com uma população que pode ser estimada em 40 mil pessoas distribuídas em densidades adequadas. Em conectividade com a Beira Mar reordenada, oferecendo moradias diversificadas em faixas de renda e estilos de vida, suas atividades locais seriam ancoradas em hotelaria, serviços e parques de recreação. O bairro cosmopolita assim formado teria como foco estruturante um porto turístico limpo. Essa obviedade é o que a maioria das cidades costeiras do mundo gostaria de concretizar, mas se sentem impedidas por conta do entulho irremovível de grandes estruturas industriais. Esses bloqueios à regeneração urbana foram implantadas no século da predominância econômica sobre as demandas do ambiente e das pessoas. Seguramente este ainda não é o nosso caso e a oportunidade da escolha ainda é real.
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